As ValquÃrias de Wagner mesclam-se à s distorções da guitarra de Jimi Hendrix. As drogas experimentadas pelos personagens de Thomas Pynchon reverberam nas bombas jogadas sobre a Europa. As consonâncias matemáticas e musicais de Pitágoras dialogam com a máquina universal, o computador, tal como formulado por Alan Turing. Bem-vindos ao universo de Friedrich Kittler, cuja obra desvela mÃdias a partir de um rigor filosófico articulado a um peculiar "delÃrio poético". Tal como Nietzsche, Kittler filia-se à tradição da filologia e da estética alemã, mas ousa e inova ao agregar as imposições materiais de uma incontornável realidade técnica e midiática.
Ao combinar linhas teóricas do pós-estruturalismo francês e da escola canadense de
mÃdia, Kittler salienta a passagem de uma cultura do sentido, vinda da centralidade do livro, para outra, performada pelo universo das mÃdias analógicas, eletrônicas e digitais. Trata-se de uma genealogia baseada na capacidade das mÃdias armazenarem, transcodificarem e disseminarem informações de forma quase automática.
Se não há software, como Kittler enfatiza num dos seus mais radicais ensaios, tampouco apreende-se uma escritura das mÃdias sem considerar suas gramáticas tecnológicas, como os algoritmos que permitem aos significantes engendrarem uma cultura de superfÃcie midiática, hoje global e onipresente. A partir desta "verdade do mundo técnico", cada vez mais importante para a compreensão da atualidade, a escrita obtém voz,corpos, órgãos, fios, ondas, imagens e vice-versa,transcodificando-se a cada variação histórica.
Organizado por Hans Ulrich Gumbrecht, que assina um posfácio iluminador sobre a obra de Kittler, este livro apresenta os principais fundamentos da materialidade da comunicação e da arqueologia da mÃdia. A antologia introduz ao leitor temas caros a Kittler, tais como o impacto das tecnologias da segunda guerra mundial, o retorno à antiguidade grega e mesmo o fascÃnio com a face técnica e materialista da obra de Heidegger.
Trata-se de uma leitura sedutora, de percursos sinuosos, onde cada ensaio oferece uma saborosa aventura - neles, quando as musas transformam-se em mÃdia as mÃdias ainda evocam os cantos das mais remotas, encantadoras e perigosas sereias.
Pablo Gonçalo (UnB)
Friedrich Kittler (1943-2011) foi professor de Estética e História da MÃdia na Universidade Humbolt de Berlim. Filósofo de formação, elaborou uma inovadora teoria da mÃdia, a partir do cruzamento entre arte, literatura, ciência e tecnologia, que teve grande impacto para uma geração de novos pesquisadores e artistas na Alemanha e em outros paÃses. Publicou vários livros, entre eles Aufschreibesysteme 1800/1900 (Fink, 1985), Grammophon Film Typewriter (Brinkmann & Bose, 1986), Musik und Mathematik (Wilhelm Fink Verlag, 2009), Philosophien der Literature (Merve, 2013) e, publicado pela Contraponto, MÃdias ópticas (2016).