Em 1887, cinco anos depois da morte de Charles Darwin, seu filho Francis publicou esta Autobiografia, escrita pelo pai em 1876. A primeira edição apareceu mutilada. As que se seguiram, também. A famÃlia considerara impublicáveis as conclusões a que Darwin chegara, na maturidade, sobre as religiões em geral e, especialmente, o cristianismo. Conclusões chocantes para o próprio autor.
  Quando jovem, Darwin considerara seriamente a possibilidade de tornar-se pastor da Igreja Anglicana, chegando a preparar-se para trilhar esse caminho. O apelo das ciências naturais foi mais forte. Não por causa de sua educação formal, mas apesar dela. Estudante sem brilho – a ponto de seu pai ter sérias dúvidas sobre o futuro do filho –, Darwin se aborrecia com as lições inúteis que recebia na escola. Preferia fazer longos passeios a pé, caçar, observar paisagens e conversar, a dois ou em grupos, sobre os temas que lhe interessavam. Durante muito tempo viveu dividido entre o insuficiente desempenho escolar e a crescente vontade de dar uma contribuição relevante à ciência.
  O embarque quase acidental – inicialmente, contra a vontade do pai – no veleiro Beagle, em dezembro de 1831, mudou sua vida. Das escolas que frequentara, trazia uma herança infeliz: era péssimo desenhista, nunca penetrara nos mistérios da estatÃstica e mal conhecia anatomia. Nada disso o desanimou. Durante quase cinco anos, observou atentamente a natureza. Registrou relevos e climas. Colecionou pedras, conchas e fragmentos de esqueletos. Incursionou pelas terras onde aportava, entre as quais o Brasil. Descreveu espécies vivas. Tomou uma infinidade de notas. Estabeleceu relações entre fatos, muitos dos quais apenas detalhes. E esforçou-se por imaginar uma trajetória histórica que pudesse explicar o que vira.
  Em julho de 1837, pelo que podemos deduzir desta Autobiografia, Darwin formulou – e guardou para si – aquela que viria a ser a lei fundamental da biologia contemporânea: ao se reproduzirem, os seres vivos podem dar origem a variedades ligeiramente diferentes, que, confrontadas com as exigências do ambiente, tendem a reproduzir-se com eficiência maior ou menor, dependendo do seu grau de adaptação. As espécies não são fixas, embora o ritmo de suas mudanças seja lento demais para ser percebido a olho nu.
  Vinte anos de intenso trabalho separaram a formulação dessa hipótese e sua primeira publicação em texto impresso. Pelo menos dois motivos explicam tamanho cuidado. Darwin logo compreendeu o alcance revolucionário de sua ideia, já que a origem e a condição do próprio homem teriam que ser completamente revistas: uma espécie a mais, entre outras, não havÃamos sido feitos à imagem e semelhança de Deus. A necessidade de buscar fundamentos sólidos, capazes de resistir à s reações previsÃveis, tornava dramático um segundo obstáculo: com os meios de que dispunha, o naturalista não tinha como descrever o mecanismo responsável pela evolução. Sua lei permanecia incompleta.
  Mesmo assim, "A origem das espécies" veio à luz em 1859, com grande impacto, decorrente de uma argumentação impecável e do grande número de observações que continha, coerentemente explicadas. Hoje, é difÃcil visualizar o espanto geral que o livro causou, pois, depois de resistir a todas as provas e reforçar-se com as descobertas posteriores da genética, a escandalosa ideia da evolução tornou-se parte da nossa cultura.
  Esta Autobiografia – aqui publicada em versão integral – é o despretensioso autorretrato de um homem simples e determinado, que mudou para sempre a compreensão que temos sobre nós mesmos.
            César Benjamin
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